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Habitar a linguagem

Depoimento do poeta André Carneiro a Osvaldo Duarte

          O texto a seguir é o resultado de alguns encontros que tivemos com André Carneiro. Não poderia chamá-lo de entrevista, pois, além de opiniões do autor, trata-se de impressões que fomos registrando e as quais damos agora uma sistematização. Nosso primeiro encontro deu-se em casa do autor, numa manhã de 1993. Queríamos conhecê-lo, saber um pouco de sua obra, e para isso imaginávamos necessário apenas uma entrevista. Os encontros, contudo, se repetiram e a cada visita, como numa mágica, aumentavam as coisas a serem ditas. Assim, voltava para ouvir André Carneiro e ali ficava por horas a fio, enquanto o poeta, sempre ao lado da janela, descrevia astros do céu, desfiava poemas, viagens e narrativas que traçavam vertical e violentamente os últimos cinquenta anos da vida nacional. As horas passavam céleres e dessas narrativas saltavam personagens alucinadas pelo silêncio a que estavam presas, todas muito carentes de serem lembradas. Assim, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, Cassiano Ricardo e tantos outros com os quais André Carneiro convivera, iam compondo, um a um, a História da Literatura Brasileira moderna. As palavras têm poder mágico e assustador. E esse poder revela-se no exato momento em que delas participamos. Foi assim que as conversas se deram e não menos assim que tentaremos seguir os caminhos percorridos sem nos afastar do timoneiro, cujas impressões digitais ou marcas deixadas no caminho, procuramos registrar. O que se segue, embora seja o objeto de nossa escrita, são essas marcas, a voz e o pensamento de André Carneiro, único ator em cena. Fala-nos sobre a Geração de 45, sobre o ofício de escritor, mas principalmente sobre o seu processo de criação: o que é a sua poesia e o seu estilo. Com o poeta, a palavra:

   A literatura e o Brasil

          Desde menino ouvia o meu pai dizer que “este país está a beira do abismo!” Não sei se ele tinha razão e até onde o Brasil está na beira ou no fundo. Felizmente nunca fui patriota, mas confesso que fico chateado com a situação cultural do país. No ensino quase tudo está errado ou ineficiente, a escola deveria ensinar a amar as artes e não é tão difícil assim. Porém os professores não a conhecem porque ninguém ensinou. A crítica literária não existe, ou melhor, desapareceu. Não há espaço para ela nos grandes jornais, quando há, limitam-se a pequenas resenhas de livro, muitas vezes mera cópia do que está na orelha. Como conhecer, então, os novos trabalhos? A maior parte da produção artística, em qualquer país, é de sofrível qualidade, mas o que é bom tem repercussão e propaganda, até por um legítimo patriotismo. Aqui isso não ocorre. Os jornais e revistas desprezam ou ignoram a nossa produção, destacando a estrangeira, e esse descaso com a nossa arte deve refletir na produção geral, evidentemente. Veja a cidade de Buenos Aires, tem mais livrarias que o Brasil inteiro. Os chamados “patriotas” suportam esse quadro. O patriotismo ingênuo e exacerbado que separa as nações é condenável, embora constitue um dado cultural universal. O ideal inatingível seria não existir fronteiras, mas, ao que parece, só os poetas pensam assim (e talvez nem todos)…

   

Antigamente e Hoje

          O André Carneiro de hoje é bem diferente daquele de antigamente. Passei por várias transformações. Acho que posso fazer um paralelo da minha evolução com a evolução da humanidade, pois também passei pela “Idade média”, onde supunha ser imortal, ter uma grande importância, ser onipotente. Creio que isso é comum à juventude. É curioso notar que, com a humanidade, aconteceu o mesmo. Na Idade Média o homem acreditava ser importantíssimo, e que o planeta onde morava era o centro do universo. Só pretensão! A descoberta do oposto trouxe ao homem um sentimento de pequenez, de insignificância. O conhecimento do mundo começou a se estruturar de maneira diferente daquilo que se julgava verdadeiro. Com essa passagem pela idade média, descobri a morte, reorganizei minha concepção de mundo. Hoje meu conhecimento da morte não traz aquela conotação trágica. Por ser inevitável, ela merece até mesmo ser tratada com humor. Assim como a morte, a insignificância do homem está presente em minha obra. Foi inevitável sentir a importância da Idade Média para a evolução da humanidade, como foram importantes para minha evolução os estágios anteriores.

  

   A Geração de 45

          É trabalhoso concatenar ideias a respeito da geração 45, que reunia poetas de tendências bem variadas. Não havia entre nós uma técnica de composição definida a ser trabalhada ou obedecida convictamente, como aconteceu depois com o concretismo. Quando a geração 45 foi batizada, nós não estávamos preocupados em combater outras gerações, afinal os acadêmicos de antes de 22 já tinham pouca importância e estavam ultrapassados. Os melhores de 20 e de 30 admirávamos. Portanto, a Geração de 45 só pode ser vista como uma evolução das anteriores. Mesmo assim, a geração de 45 se assemelha, na minha vida, ao fato de ter estudado no colégio Arquidiocesano, em São Paulo, onde meu pai me colocou interno quando tinha 11 anos. Nesse colégio estudei, formei opiniões, mas fui colocado lá, não escolhi, não optei. Quando me disseram que eu fazia parte de 45, achei natural, eu era amigo de Domingos Carvalho da Silva e de outros considerados dessa geração. Quando começaram a aparecer artigos, conversas ou ensaios definindo ou colocando as características desse movimento, eu lia sem tomar partido, exatamente como no colégio, fui colocado, o que ocorre com todos. E, assim como um colégio não traça caminhos definitivos, 45 não influenciou, não determinou minha criação artística. Quando crio, preocupo-me em fazer poesia de qualidade que satisfaça a minha emoção e a dos outros. A obra de arte vale pela qualidade, em qualquer época e com qualquer título. Sempre prezei a liberdade, mas com coerência e sobriedade. Se isso for ser da Geração de 45, não tenho do que reclamar. Minha poesia fala o que sou.

  

   O Clube de Poesia de São Paulo

          Foi sugerida a criação do Clube de Poesia de São Paulo em 1949, no I Congresso Brasileiro de Poesia, primeiro evento intelectual do qual participei. Quando foi aprovada a criação do Clube, eu, embora inexperiente, era bastante realista e achei uma bobagem. Um clube de poesia me parecia algo ridículo. Mas eu estava enganado, o Clube foi muito importante na época. Seu primeiro presidente foi o grande poeta Cassiano Ricardo. Sendo chefe do gabinete do governador, ele conseguia verbas para a publicação dos livros de poesia, lançando toda uma geração, com grande repercussão em todo o país. A atuação de Cassiano Ricardo foi importante. Entretanto, tem-se que destacar o líder e incentivador que foi Domingos Carvalho da Silva. Até hoje o Clube existe, mas já sem o antigo prestígio. Fui presidente há alguns anos, sem poder realizar nada, pois o Clube é uma espécie de academia com número limitado de participantes, que não pagam mensalidades. Dentro da realidade brasileira atual, a Poesia fica limitada a uma elite. Dentro do Clube houve muitas brigas, demissões e polêmicas noticiadas pelos jornais, o que seria inacreditável hoje, pois os jornais transformaram-se em indústria, a preocupação geral é o lucro e cultura não entra em cogitação. Como o mundo cultural brasileiro é insignificante, em vez de contribuir para aumentá-lo, o que seria magnífico, os jornais simplesmente ignoram e só noticiam aquilo pelo que recebem cobertura financeira, normalmente de produtores do exterior. Num clima desses, como manter um clube de poesia?

  

   A poesia

          Após a publicação do meu primeiro livro Ângulo e Face, fazer poesia se tornou uma tarefa de grande responsabilidade devido ao acolhimento extraordinário que teve o livro. Sérgio Milliet escreveu um rodapé no O Estado de São Paulo afirmando que eu era um poeta de São Paulo e seria logo um poeta do Brasil. Fazer um poema deixou de ser um ato natural, espontâneo . Por isso fiquei muitos anos sem publicar poesia. De repente, percebi que ninguém mais se importava com a poesia de André Carneiro, minhas responsabilidades eram fruto da minha cabeça ou da minha vaidade. Recomecei menos preocupado: a poesia é um espelho onde me agito à pocura do “segredo do mundo”, tento através desse espelho enxergar-me por dentro, penetrar na minha vivência e na dos outros. Em minha poesia, digo sempre a verdade, a minha verdade ou aquela que julgo ser. As dúvidas são expressas como dúvidas. Não invento sentimentos, não me coloco na pele alheia, não finjo. Luto para ser sintético e preciso. Almejando a essência, desprezo qualquer coisa que me distraia, que leve ao gratuito, mesmo que seja interessante ou bonito. Coloco minhas imagens sempre em relação com o que eu quero expressar. Trato de temas objetivos, problemas da vida. Tento ultrapassar a barreira fechada do inconsciente, ou pelo menos recriá-lo na tentativa de me aproximar do mistério. Não sou um poeta inspirado nem tenho uma técnica prévia e precisa de construção. Fico em estado de concentração, em estado de espera e procura, o tema surge e eu escrevo. Depois corrijo, corto tudo que seja redundante, dispensável ou excessivo. Elimino os adjetivos, mudo versos de posição, substituo sempre palavras por sinônimos mais curtos. Fico satisfeito quando percebo que consegui algo que saiu do âmago, do centro da minha vida. Todos os recursos usados pelo poema são iscas para captar o inconsciente. Mergulha-se no lago das palavras para descobrir aquelas, donas da revelação. O poeta lida com a surpresa, o arbitrário, o paradoxal. Ele é uma espécie de cientista louco. Mistura tudo, e quando explode, é uma maravilha. Não identifico influências muito intensivas em minha poesia, mas o surrealismo sempre me agradou, por ser filho direto de Freud, do inconsciente, do mistério. De modo mais estrito creio que os modernistas devem ter me influenciado mais do que qualquer outra corrente, como alguns escritores que li, como Proust, Rilke, Drummond, Baudelaire, Bandeira, Kafka, etc., mas as influências foram em nível inconsciente e eu não consigo demarcá-las com precisão. Minha poesia é fragmentada, mas isso não é consequência de uma ideológica literária. É o resultado ou a reação produzida pelo mundo fragmentado em que vivemos. Diante de um noticiário internacional da TV, recebemos diariamente “fragmentos” do planeta. E a poesia é isso, nossa vida nesse planeta. É também uma religião para mim, contudo, sem dogmas ou obrigações. Se vou desaparecer definitivamente, tento criar, talvez desesperado consolo inconsciente de quem quer permanecer de alguma maneira…

   A poesia e outras artes

          Quando Ângulo e Face foi publicado, formou-se uma comissão – o que era comum se um livro tinha certo destaque – para uma homenagem que foi muito importante para mim, na época. Dela fazia parte Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Domingos Carvalho da Silva, Jamil Haddad, Helena Silveira, Cassiano Ricardo, Geraldo Pinto Rodrigues, Antonio Candido etc, etc. Houve discursos, José Geraldo Vieira comentou que minha prosa também era importante, Carlos Burlamaqui Kopke, com sua conhecida erudição, também falou. Esse interesse por minha poesia, principalmente os elogios do Sérgio Milliet, me assustam muito e criam um grande senso de responsabilidade. A partir daí são dez anos sem publicar poesia. Dez anos a espera de textos que fossem inquestionáveis para mim mesmo. Dez anos de busca para não frustrar minhas próprias expectativas. Foi assim que aprendi a mais importante lição: só criar se satisfizer a minha emoção, independente de correntes ou estéticas, ou mesmo, independente da modalidade de arte. Faço com a mesma emoção e interesse, conto, romance, pintura, fotografia e cinema, mas a poesia é a parte mais importante da minha criação artística. Posso fazer essa afirmação porque tenho experiência em outras artes e apesar de fazê-las com muita paixão, não consegui dar-lhes exclusiva continuidade. A poesia é minha realização maior. É nela que deposito a minha vivência. Em poesia eu fiz o máximo, fiz tudo que pude. A poesia aflorou em mim como uma árvore maior do que as outras artes, sem dúvida, a ponto de fazer da poesia a minha própria vida.

   A poesia no reino das palavras

          O romance, o cinema, a pintura são discursos que contam histórias. Existem, contudo, os que não têm enredo, não buscam a narratividade e constituem a pequena parte boa da arte moderna. É característica da boa poesia contemporânea evitar a narratividade, sempre um tanto quanto didática, mais própria para a crônica ou o conto. Na poesia, isso altera todo processo de criação, pois quando se parte de um enredo é como se houvesse um mapa, que pode ser apagado, se duvidoso ou frágil. Na poesia, se quisermos traduzir um sentimento específico e diferente de tudo que ja foi dito, descrições e adjetivos não resolvem. É preciso adivinhar a chave do reino das palavras, tentar abrir a porta do mistério da vida e viver na arte. Isso talvez seja a poesia.

   Reiterações…

          Sempre notei que repito alguns termos e até versos em meus poemas, cheguei algumas vezes, a substituí-los. Com o passar do tempo percebi que essa obsessão era a maneira do meu inconsciente revelar um mito. Faço muitas comparações com formigas. A linguagem desses insetos, sua organização me interessam, como interessam também os vermes e micróbios, que aparecem em meus poemas com frequência. Afinal somos descendentes de peixes e criaturas que há milhões de anos eram insignificantes. Cores também são frequentes. O vermelho aparece muitas vezes, é uma questão de gosto pessoal. Essa cor me agrada esteticamente e se os psicólogos afirmam que o vermelho agrada pessoas que querem se destacar, procuro apenas aceitar traços vaidosos, embora não me preocupe com eles. O vermelho não tem em minha poesia, portanto, nenhuma conotação política, não simboliza a “foice e o martelo”. Aliás, toda relação ditatorial me assusta. Creio que a liberdade seja o que de mais valioso uma pessoa pode ter e deve ser defendida até para os inimigos. Além dessas, também a palavra sangue uso repetir muito. O mesmo acontece com palavra mão, seja como um todo, ou desmembrada em dedo, impressão digital, unha, palavras sempre carregadas com o significado de carícia ou prazer. A mão é o primeiro elemento de comunicação de um casal, ela representa o toque, o início verdadeiro de tudo, o momento, enfim, em que o amante pode imprimir sua digital na pele amada. O desmembramento da mão também significa: tem uma conotação da busca de um complemento para o amor, a união das partes para formar um todo. É constante ainda a presença da morte. Ela aparece como mulher vestida de negro, de saia preta. Às vezes a trato com humor, fujo dela lendo histórias em quadrinhos, jogo cartas com ela, etc. Chego a propor fazer amor com a insinuante mulher de preto. Entendo que o convívio com a morte, a presença dela, tem me ajudado nas quotidianas contingências. Embora o medo, ela me dá a consciência da precariedade humana, me leva a viver melhor o momento presente, faço dela “uma conselheira”, como disse Castañeda… É através dessas reiterações obsessivas que busco entender o mistério da vida, de onde vim, porque vim e para onde vou. Não há respostas para essas perguntas, mas é inevitável enfrentá-las.

  

   Ficção científica

           A ciência me interessa e eu a estudo, não metódica ou profundamente, mas de maneira contínua, afinal o conhecimento da ciência é indispensável para o entendimento da vida contemporânea. Tenho poemas influenciados pelas realidades das novas teorias da formação do universo, pelos conceitos de estranheza (de Heisenberg) da física quântica etc. Também tenho alguns poucos poemas de ficção científica, isto é, recriando ou inventando um cenário futuro. Já imaginei em minha obra, por exemplo, o futuro de algumas artes de maneira promissora. A poesia poderá ser cifrada em notas como a música, poderá ter odores, cores e imagens em terceira dimensão, ou ainda ser transmitida por um pequeno aparelho que se liga na testa e produz ondas alfa, interferindo nos neurônios e sinapses, provocando um verdadeiro orgasmo. E não é preciso citar a realidade virtual já existente. Acho o título “ficção cientifica” um nome infeliz, inadequado para definir um gênero literário influenciado pelo desenvolvimento tecnológico que tem mudado rapidamente o cenário de nossa vivência atual. Preferiria, como Aldous Huxley, Orwell, ou a excelente romancista Rachel Ingells, não colocar o desacreditado rótulo “ficção científica” em qualquer trabalho meu. Digo desacreditado porque a crítica não vê com bons olhos a produção de ficção científica. Isso ocorre por causa da desatualização e o desconhecimento da ciência, afinal, aceitar a ciência implica em alterar muitos conceitos que já foram cristalizados e isso não é cômodo para a crítica. Essa tendência de a crítica permanecer estacionada provoca uma grande defasagem entre ela e a ficção cientifica, pois a arte não é estacionária, o artista a modifica continuamente. Em minha poesia aparecem informações científicas e elementos de ficção científica com um tratamento surrealista. Isso me agrada porque associa o real com o imaginário, o abstrato com o concreto. Mencionando ou não fatos científicos eu não penso no leitor, quando crio, mas inconscientemente, devo estar me dirigindo a um leitor, querendo que me compreenda. A compreensão, se houver, passa por outros canais, extrapola os hermetismos e os meandros gramaticais ou semânticos.

   Os ruídos do eu

          A arte é vida e minha vida é minha arte. Fatos que vivi são transportados para o verso, mas essa marcas aparecem quase que à minha revelia, como as várias referências à participação política durante a dítadura militar. Elementos sombreados pelo auto bibliográfico, creio serem quase inevitáveis, mesmo na prosa onde criamos personagens que são nossas “antíteses” e com isso conseguimos disfarçar. Na poesia, isso nem sempre é possível, pois tudo o que há acaba refletindo um certo retrato, embora nem sempre nos reconheçamos nele nitidamente. Esse retrato desfocado é um pouco o nosso estilo. A perda da fé acredito que tenha sido inconscientemente transportada para os versos. Isso contribuiu para que eu conseguisse divagar mais livremente sobre o mistério da vida, sem o auxílio da explicação perfeita de um deus humanizado criador de tudo, não consigo saber qual o limite da realidade e da ficção. Mas em certos momentos, talvez consiga entrar no mistério do inconsciente. É como se abrisse com uma faca o meu interior e de lá saísse uma pomba branca, mas manchada de sangue.

 

   O estilo

         Estilo em literatura é quase indefinível, pois apenas as trilhas podem ser identificadas. Podem-se notar características, mostrar se o autor usa frases curtas ou longas, se é hermético ou transparente, agudo ou conciliante, etc. Mas, isso apenas conduz ao estilo, não garante a compreensão de um estilo. Estilo é como a beleza feminina, não são as formas perfeitas que a determinam, e sim o halo cativante e harmonioso. Estilo é algo invisível, mas muito forte como uma força magnética que não se pode medir com precisão. Pode-se imitar o “jeito” de um escritor, mas atingir ou reproduzir um estilo é impossível, só se consegue uma caricatura. Em artes plásticas é mais fácil imitar um estilo. Imagens podem ser copiadas com menos dificuldade do que um tom literário, que usa os signos em milhares de combinações possíveis e imprevistas. Estilo é perfume, não se traduz em letras, por isso apenas as trilhas são identificadas.

 

   O metapoema

          Enquanto faço poemas, gosto de refletir a atividade literária, gosto de abordá-la como assunto. Falar do ofício me agrada muito e por isso tenho inúmeros poemas assim. O metapoema é importantíssimo, afinal penetra na essência da essência, é um “strip tease” do fundo e da forma, um desvestir que acaba exprimindo muito bem intenções e técnicas atrás do palco. Poesia é armadilha. Por ser tão pessoal e uma forma de exprimir (ou tentar descobrir) o que somos, o “eu poético” fica sendo, quase sempre, um conivente, um cúmplice e o autor distraído confunde o personagem com o poeta. Ficamos assim no metapoema: mosaico camaleão.

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O jornal Tentativa e a sua contribuição à história da literatura

Osvaldo Duarte

 

           A publicação, em edição reunida, de todos os fascículos do jornal Tentativa (1949-1951) nos autoriza a pelo menos uma certeza: os estudos de historia da literatura devem a si mesmos – como resposta à ambição de que se compõem – voltarem-se mais atentamente para os jornais e revistas literárias. Lá estão agrupamentos inteiros que se dissiparam, encouraçados em ruína, inteligências insurrectas, obras que esperavam ser escritas, escritores que se lançavam em desespero para romper a muralha do anonimato. Lá os encontramos, uns em projeto, outros em fase de lapidação, prudentes ou aventurosos, inspirados ou cépticos se entregando às esferas insondadas da linguagem. Lá estão as justificações daqueles que resistiram ao tempo e às intempéries da atividade literária.

           Não quero dizer aos historiadores que dispensem seus cálculos àquilo que estando a caminho ainda não se impôs como literatura, pois cabe aos críticos essa apreciação. Lembro, apenas, que as publicações avulsas, os jornais e as revistas literárias não estão apartados da história e nela não se pode ignorar, mesmo que em seu domínio pré-literário, a origem, o substrato ou subtraço da vida literária.  É nesse sentido que festejamos a publicação do jornal Tentativa, não só porque nos fornece informações sobre os autores ali publicados, mas porque nos oferece dados importantes sobre as reflexões em torno da literatura dos primeiros cinco anos do pós-guerra e especificamente sobre a geração de 45.

         Apesar do acontecimento literário que representa esta publicação, demoramos um pouco a compreender a dimensão e o valor do jornal Tentativa até constatarmos que só agora, depois de mais de sessenta anos, desde sua publicação, começam a aparecer as citações mais substanciosas a seu respeito, quer em ensaios críticos, referências bibliográficas ou em meio eletrônico, a exemplo do que fez a poeta portuguesa Sandra Costa em sua home page. Que jornal foi esse, perguntamos intrigados. Um jornal que parecendo ressurgir do nada, estimula-nos a revolver terrenos e situações que a todos pareciam cimentadas.

A idéia inicial é a de que teria funcionado apenas como a contracena da Geração de 45, o que já seria muito, considerando-se a escassez de documentos sobre o assunto. O que verificamos, contudo, inclusive como problema de memória cultural, é que o jornal Tentativa pode ter sido um dos mais importante veículos de divulgação literária do seu tempo, se o compararmos a jornais ou revistas como Ângulos, editada em Salvador; Vocação, de Belo Horizonte ou a Revista de Novíssimos editada por Célio Benevides, Fernando Henrique Cardoso e Haroldo de Campos. Havia ainda a revista Clã, de Fortaleza; Bando, de Natal; e, em São Paulo, dirigida por Rolland Corbisier, a revista Colégio, que numa vertente mais ou menos oposta poderia ter ocupado o espaço deixado pela revista Clima, criada por Antonio Candido e seu grupo. Nesse universo, é importante registrar que esses veículos de difusão literária, divulgação de autores e de crítica, se resultavam de concepções diversas, visavam aos mesmos objetivos: em aspectos mais amplos, uma incalculada defesa da arte e das ideias e, na raiz, o desejo individual de liberdade na disputa pela exposição e fixação, quer de obras individuais, quer do projeto intelectual de cada grupo, sem dispensar, evidentemente, uma variada rede de conflitos de ordem interior, resultantes do clima após-guerra.

           Em âmbito estético, pareciam todos vinculados a uma compreensão dirigida daquilo que teria sido a última análise de Mário de Andrade sobre do  Modernismo. Reportadas fora de contexto, as posições severas do crítico acabavam reduzidas a expressões lapidares como “direito permanente à pesquisa” e “atualização da inteligência brasileira”, repetidas como palavras de ordem por um sem-número de jovens intelectuais que as tomam como se fossem a sua própria novidade, e eles, os demiurgos responsáveis pela estabilização de uma consciência criadora em nossa literatura, como imaginara Mário. É o que registram, por exemplo, certos textos de revistas de jovens como Clima (1941-44), Colégio (1948), Revista de novíssimos (1950), Orfeu (1947) e alguns dos depoimentos da Plataforma da nova da nova geração. Tão contundentes as palavras e os gestos, que suscitam atitudes destemidas, afeitas a condenar ou defender, criticar e principalmente julgar, investidas de um poder conferido por um símbolo apresentado como heráldica dos jovens burgueses da época: a formação universitária.

O jornal Tentativa, fora desse eixo de valor, já aqui se diferencia. Estava ligado mais à imagem de Oswald que às idéias de Mário e era produzido por jovens intelectuais de uma pequena cidade do interior paulista, aonde o Modernismo chegara mais ou menos filtrado das suas polêmicas. É justamente por isso que Tentativa mais nos encanta: o seu desejo e disfarce cosmopolita, como se ao olhar com dissimulado senso de superioridade e por sobre os ombros, deixasse ao largo a geração de 45, de onde emergia, e fosse ter com Oswald de Andrade, em São Paulo, com Drummond e Murilo Mendes, no Rio de janeiro, e com Vergílio Ferreira, em Portugal, trazendo-os para suas páginas com colaborações inéditas, sem nenhum peso de responsabilidade ou senso de culpa. Na crítica, as relações eram igualmente incomuns. Seus colaboradores pertenciam às gerações de 20, 30 e 45 e as opiniões, não raro dissonantes, colocadas lado a lado em estranha combinação, só possível a um jornal que se valia do sotaque interiorano como ponto neutro, propício à fusão de idéias e conceitos. Assim, era possível colocar lado a lado Sérgio Milliet e Fábio Lucas, Otto Maria Carpeaux e Domingos Carvalho da Silva, Roger Bastide e Menotti Del Pichia, além do contato com formações muito distintas dentro de uma mesma geração, como as de Péricles Eugênio da Silva Ramos e Antonio Candido.

           A leitura comparada do jornal mostra-nos que Tentativa procurou inserir-se, pelo menos em São Paulo, num espaço de divulgação e crítica não explorado por revistas como Clima, do grupo de Antonio Candido e Revista brasileira de poesia, do grupo de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Se essas revistas tinham como patronos Sérgio Milliet e Mário de Andrade e buscavam o estabelecimento de novas posições críticas e criativas, Tentativa passeava imprudente entre o fogo cruzado das gerações, com momentos que lembram a ousadia da revista Joaquim (1946-48). Consideradas as diferenças de objetivo dessas publicações, uma, um jornal de divulgação, e, as outras, revistas planejadas com o propósito de expor as posições teóricas a que seus grupos haviam chegado, são intrigantes as semelhanças no trajeto percorrido, a começar pela apresentação do primeiro número de duas delas: Clima convidara Mário de Andrade para a abertura do seu primeiro número e Tentativa, que nascera como reflexo da atuação final de Mário e se beneficiaria da atenção dedicada de Sérgio Milliet aos novos, convidava ninguém menos que Oswald de Andrade para fazer sua apresentação.

         A escolha de Oswaldo coincide com o momento em que o escritor modernista passa a ser estudado de forma objetiva, desprendendo-se da imagem galhofa difundida pelo senso comum. Nesse sentido, o grupo de Tentativa participa daquilo que se poderia chamar de antropofagia ao contrário, conforme relato que há alguns anos ouvi de André Carneiro e, algum tempo depois, com propósito diverso, de Décio Pignatari. De acordo com os dois poetas, no final do decênio de 1940, início de 50, Oswald já não tinha interlocutores e se acercava de jovens como inevitável forma de resistência. Fazia, então, uma antropofagia ao contrário: alimentava-se do desejo daqueles jovens audaciosos e desiludidos com os rumos seguidos pela poesia brasileira, ao tempo em que era devorado por eles. E foi sob esse clima, que, em 26 de fevereiro de 1950, o Oswald fantasista concedeu entrevista sugerindo criar a partir do grupo de Tentativa uma espécie de Ateneu nas serras de Atibaia.

       Criado pelos poetas André Carneiro, Cesar Memolo Jr e Dulce Carneiro, Tentativa foi publicado em Atibaia, interior de São Paulo, entre abril de 1949 e maio de 1951, em treze edições bimestrais, sendo as duas últimas comandadas apenas de Cesar Memolo. Chama-nos logo a atenção o elaboradíssimo plano editorial encetado: uma matéria de primeira página e outra, eventualmente fechando cada número do jornal, servem literalmente como baliza de opinião. Nestas páginas há sempre um nome de relevo, seja da geração nova, como Domingos Carvalho da Silva, Lorival Gomes Machado, Cassiano Nunes ou André Carneiro, seja das gerações mais antigas com seus autores já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Henriqueta Lisboa, Vinícius de Moraes, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com colaborações inéditas e especiais.

         Tentativa consolida-se rapidamente como veículo de divulgação literária e, em exatos dois anos, goza de notável prestígio, com correspondentes em centros culturais como Buenos Aires, Lisboa e Paris. Hoje, transcorridos pouco mais de sessenta anos, é possível avaliar sua projeção e permanência, seu valor como acervo de textos de criação, textos de intervenção na vida cultural e sobre os elementos formadores do que se passou a chamar imprecisamente de geração de 45. É nesse sentido que o jornal Tentativa pode contribuir de forma ainda mais extraordinária: Quero dizer que as suas escolhas, seu percurso peculiar, sua insistência em aproximar autores e tendências diversas, mostra-nos previamente que a denominação “Geração de 45” estava fadada a ser um espaço vazio, uma zona de fronteira que o tempo mostraria ser pátria esquecida ou denominação que ninguém quer. A mobilidade da publicação, o acervo desigual e posições heterogêneas levam-nos a pensar, por exemplo, (para além do jornal) menos numa geração de 45 que numa arte brasileira do pós-guerra, cujas articulações se estendem às décadas seguintes, depurando obras e refinando talentos hoje estabelecidos, como Franz Weissmann, Carybé, Geraldo de Barros e Aldemir Martins, nas artes plásticas, e entre os escritores, André Carneiro, Afonso Ávila, Alphonsus de Guimarães Filho, Bueno de Rivera, Cyro Pimentel, Domingos Carvalho da Silva, Ferreira Gullar, Geir Campos, Hilda Rilst, Ilka Brunhilde Laurito, José Paulo Paes, Lêdo Ivo, Manoel de Barros, Marcos Konder Reis, Mário da Silva Brito, Mauro Mota, Moacir Félix, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Renata Pallottini, Stela Leonardos, Thiago de Mello ou mesmo Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari egressos do Clube de poesia, o quartel general da malfadada geração, em São Paulo.

            Esse perfil é o que melhor justifica o interesse do jornal. Trata-se, pois, de um acervo que se coloca (agora) à disposição da arqueologia literária completamente virgem e ignorado. E nesse sentido, não só nos apresenta uma série de textos em primeira versão e indícios da primeira recepção de outros, como restabelece historicamente um recorte e registro de um período da literatura nacional concretamente pouco estudado. Oferece-nos ainda textos que podem não ter sido recolhidos por seus autores por escaparem ao interesse e organização de obras em gestação, e o mais importante, tira da clausura uma série de textos retidos pelo esquecimento por mais de meio século. Ficamos sabendo, por exemplo, que Ferreira Gullar escrevera um livro de contos, As paredes, que não aparece em sua bibliografia; que Leonardo Arroyo vencera o concurso literário do jornal e que Osman Lins concorrera com o livro Os Sós, do qual não se tem notícia. Encontramos também, entre outras peças, a versão original de um texto de Lygia Fagundes Telles que viria a ser publicado em livro quase três décadas depois e um texto de Murilo Mendes, Juan Miguel, dedicado a Gabriela Mistral, talvez perdido pelo autor e não incluso, até então, em sua Poesia completa e prosa.

            Quanto ao material publicado nas 13 edições, o leitor encontrará desde poemas recebidos de diferentes pontos do país e do exterior a notas sociais, passando pelos contos, crônicas, comentários críticos sobre literatura, artes plásticas, cinema, teatro, filosofia e entrevistas que pretendem cotejar, sobretudo, a opinião dos escritores a respeito dos valores da arte, das condições da literatura da época e da propalada oposição entre as gerações de 22 e 45, assunto que agitava os ânimos literários daquele tempo. Entre essas entrevistas, é possível destacar aquelas concedidas por Graciliano Ramos, Sérgio Millet, José Lins do Rego e Otto Maria Carpeaux, além dos depoimentos de Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Roger Bastide, Murilo Mendes, Lygia Fagundes Telles, cujo pano de fundo nos oferece um organizado painel da vida cultural do início da década de 1950.

           O eixo dessas entrevistas são perguntas procedentes de duas afirmações dubitativas: (a) se teria surgido após 1945 uma nova poesia, menos ou mais expressiva do que a das gerações anteriores, e (b) se o hermetismo da nova poesia era resultante de uma busca do essencial poético ou reflexo inevitável de uma época conturbada. Menos pergunta que respostas, essas questões projetam conceitos dúbios, suscitando e ao mesmo tempo abafando polêmicas, estimulando e ao mesmo tempo inibindo a reflexão, dando, contudo, espaço às mais variadas opiniões: Para Ledo Ivo, por exemplo, o problema da literatura emergente não era o de libertar-se ou não dos modernistas, mas de incorporar conquistas, transfundindo esse patrimônio num método de composição mais ou menos pessoal. Para Sérgio Milliet, não se tratava de uma poesia nova, mas de uma poesia diferente, visto que o advento de uma nova poesia exigiria dos moços uma nova mensagem, como foi o caso dos românticos, dos simbolistas e dos modernistas de 22. Para Oswald, os moços de 1945 e 1950, não podendo fazer revolução, provocaram turbulência, revolta e reivindicação justa contra o que chama de Academismo modernista, prosseguindo, de certo modo, no caminho das experiências rebeldes.

              A verdade é que as mudanças da ordem geral estabelecida vinham sendo solicitadas há bastante tempo e os novos gestos e discursos escorriam pelos jornais e revistas literárias em vários pontos do país quando Domingos Carvalho da Silva resolve decretar a morte do Modernismo, como se fosse necessário tropeçar nas ruínas do Estado Novo para perceber que a festa estava acabada. A Declaração de princípios do Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, de 1945, aponta nesse sentido. Ao escritor, dizia Alceu Amoroso Lima no mesmo ano, cabe colocar-se dentro do livro e também dentro da vida. E Álvaro Lins, já em 1941, dizia em um artigo para o jornal Correio da Manhã que o intelectual do tempo não teria somente a tarefa de realizar a sua obra, mas também a de defender condições de vida que tornassem essa obra possível. O problema, talvez, é que o afã questionador das gerações de 40 e 50 não tenha tido a rebeldia necessária capaz de ultrapassar o debate periférico, ficando a revolução política e cultural à mercê dos oficiais de gabinete pouco preparados para pensar o país.

           Merecem nota também alguns artigos sobre a profissionalização do teatro e a sua revisão de linguagem, sobre a cultura popular e o folclore e sobre o cinema brasileiro. Na crítica, é necessário frisar a presença de Otto Maria Carpeuax, que em uma de suas aparições brinda-nos com o Cancioneiro Paulistano em que compara as obras do italiano Teófilo Folengo (que escreveu sua própria língua Mac-caronica) às produções de Júo Bananére.

Tentativa era definido pelos seus editores como jornal “aberto a todas as tendências” e surge num momento de impasse político, histórico e cultural, como observa Oswald de Andrade no texto de abertura do primeiro número do jornal. Um momento, aliás, diante do qual era prudente escusar qualquer posição pronta e definitiva. Enfim, um momento de Tentativa. Com esse nome, diz Oswald, os redatores do jornal alcançavam todo o grave sentido que tomara a humana poesia desde Hölderin. Com Tentativa, estava indicado um caminho e creio residir aí a dominante que define a inclusão dialética de ordem e desordem, avanço e parada, tradição e modernidade naqueles autores, que atentos à dinâmica histórica, se ocuparam da literatura e da crítica literária brasileira nas últimas décadas.

            Por fim, quero que esta apresentação alcance também a categoria de homenagem que faço a André Carneiro e Maria Lúcia Pinheiro Sampaio que no início da década de 1990 permitiram a reprodução das suas coleções do jornal Tentativa, utilizado desde então como referência por pesquisadores às voltas com a vida cultural do final da década de 40 e início dos anos de 1950. Exemplo desse interesse é o projeto Proposta para uma revisão da crítica e da história da poesia brasileira da geração de 45, desenvolvida por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia, com o auxílio do CNPq.

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